31 de out. de 2023

RESENHA: Um defeito de cor - Ana Maria Gonçalves

É em 1810 no Reino de Daomé hoje território do Benin que a história começa. Na cidade de Savalu somos apresentados à personagem principal, Kehinde, sua irmã gêmea Taiwo, seu irmão Kokumo, sua mãe e sua avó, personagem importante, que ela é bastante apegada, a ensina sobre as tradições, os mitos e a espiritualidade do seu povo.

Vai ser na cidade de Uidá que a vida de Kehinde mudará drasticamente quando a cidade movimentada por guerreiros do Chachá e muitos homens brancos capturam as irmãs gêmeas para serem levadas como escravas.

Essa parte inicial da história destaca a riqueza da cultura africana, os laços familiares profundos e o choque de ser arrancada de sua terra natal. Esses eventos iniciais estabelecem o cenário para a narrativa e mostram as origens de Kehinde antes de sua longa e desafiadora jornada como escrava no Brasil.

A viagem no navio foi uma experiência terrível para Kehinde, Taiwo e a avó, marcada por condições deploráveis, superlotação e sofrimento extremo. Os africanos foram submetidos a tratamento desumano durante a travessia, enfrentando doenças, fome e maus-tratos. Muitos não resistiam e morriam durante a jornada e os corpos eram atirados ao mar. Foram narrações bastante dolorosas para acompanhar, principalmente quando kehinde perde o que restou de sua família e chega sozinha na Ilha de Frades, na Bahia.

Chegando em solo brasileiro os africanos eram forçados a receber o batismo cristão e um nome em português, um ato que simbolizava a imposição da cultura e religião europeias sobre os africanos. Em seguida eram levados para os mercados onde ficavam “disponíveis” para venda, alguns já vinham marcados a ferro indicando o sinhô que seria o dono daquela “mercadoria”. Mercadoria mesmo, porque as pessoas escravizadas eram consideradas como objetos, peças e moedas de troca.

As experiencias de Kehinde no Brasil vão desde a vida nas senzalas que era o local onde os escravizados viviam, frequentemente em condições de superlotação, falta de higiene e sofrimento, dos trabalhos forçados extenuantes nas plantações, frequentemente sujeitos a castigos físicos e privações, até proibição de falar a língua de origem e expressar a própria fé.

Essa proibição tinha o objetivo de apagar as identidades culturais e religiosas dos africanos, além de controlar e "civilizar" os escravizados de acordo com as normas e valores europeus. Apesar dessas proibições, muitos escravizados conseguiram manter suas crenças e práticas religiosas de origem de maneira clandestina, fundindo elementos do cristianismo com suas tradições africanas.

Não sei se consigo sinalizar o que mais gostei do livro, mas diria que o fato da história ir evoluindo por diversas cidades do Brasil, o que agrega uma parte significativa da história e da diversidade cultural do povo brasileiro. A Cada cidade visitada o livro oferece um contexto histórico e cultural distinto, refletindo as diferentes experiências dos escravizados em várias partes do país.

São relatos muitas vezes difíceis de digerir, mas que apesar de se tratar de uma ficção sabemos que aconteceram inúmeras vezes, talvez seja isso o mais doloroso do livro. Por outro lado, compreender a história é fundamental para não repetir os erros do passado.

A meu ver precisamos conhecer mais essa parte da história do nosso país para que nos tornemos cidadãos melhores. Ana Maria Gonçalves consegue proporcionar essa viagem ao passado e mais, através da perspectiva de uma pessoa escravizada, diferente do olhar branco que estamos acostumados.

Ao longo de sua vida, Kehinde encontra diversas pessoas que desempenham papéis significativos em sua história, se envolve em movimentos de resistência e luta pela liberdade, participando de revoltas de escravizados e movimentos emancipacionistas.

Ao ler sobre essas revoltas e como as pessoas escravizadas foram responsáveis por muitas das conquistas do povo brasileiro dá até um quentinho de saber o quanto resiliente, persistente e forte esse povo se mostrou apesar de toda a adversidade.

O livro não segue uma linha cronológica rígida, mas pinta um retrato detalhado da vida de Kehinde ao longo de décadas, destacando sua luta pela liberdade, identidade e dignidade em meio às adversidades da escravidão no Brasil. A narrativa é uma exploração rica da experiência do povo afro-brasileiro e da diáspora africana. Não consegui ser sucinta, mas é um livro que me marcou profundamente e deveria ser leitura obrigatória.

Título Original:Um defeito de cor
Editora: Record
Páginas: 952
Ano: 2006

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